Moradias em primeiro lugar. Essa foi a resposta apontada por diversos especialistas reunidos desde sexta-feira (21), na capital paulista, para discutir os problemas, caminhos e soluções para a Cracolândia, nome pelo qual ficou conhecida uma região de São Paulo que reúne usuários e dependentes de drogas.
“É impossível resolver a situação de qualquer pessoa em situação de rua sem pensar em moradia em primeiro lugar”, disse o sociólogo Marquinho Maia, em entrevista à Agência Brasil, logo após participar do seminário Cracolândia em Emergência. O evento prossegue até domingo (23), no Teatro de Contêiner Mugunzá, no centro da capital paulista.
“A partir do momento em que a pessoa tem um lugar para estar, a assistência social e a saúde conseguem atender melhor. O cuidado tem que ser feito em liberdade. Não existe cuidado sem liberdade”, reforçou.
Limpeza urbana
O psiquiatra Flávio Falcone concorda com a afirmação. Ele também é palhaço e coordena o projeto Teto, Trampo e Tratamento e integrante do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Proad-Unifesp).
Para o médico, é impossível resolver o problema da Cracolândia sem que seja resolvida primeiramente a questão da moradia “porque tudo o que você precisa fazer, que é gerar renda e fazer algum tipo de tratamento, sem a moradia não é possível na prática”.
Falcone citou um exemplo que tem sido recorrente no tratamento contra as drogas voltado para moradores de rua. “Por conta do rapa, que é o que a prefeitura chama de limpeza urbana, hoje eu prescrevo uma medicação para a pessoa. No entanto, o rapa leva tudo e a pessoa fica sem medicação. Aí, no sistema do SUS [Sistema Único de Saúde], consta que passei medicação para dois meses. E enquanto não se passarem esses dois meses, a pessoa não pode pegar o medicamento de novo”, contou ele.
“Não tenho dúvidas de que todas as outras questões, como trabalho e tratamento na perspectiva da redução de danos, sem ter o mínimo, que é a moradia, é impossível de serem resolvidas”, disse.
Segundo Falcone, essa moradia precisa ser livre de exigências e burocracias. “A primeira coisa que se deveria fazer é oferecer moradia com baixa exigência, que é diferente da moradia que o governo atualmente oferece, de alta exigência, em que você precisa estar abstinente e fazer testes de urina para comprovar que está abstinente. E se o seu teste estiver positivo, você volta para a rua e passa por todo o ciclo de novo que é a internação e comunidade terapêutica”, explicou.
Remoção de famílias
Para os especialistas, as soluções adotadas pelos governos para a Cracolândia, historicamente, privilegiaram a remoção das pessoas e das famílias do centro de São Paulo ao invés do diálogo com os moradores locais.
“[A remoção] é uma solução para expulsar essa população daqui. O que de fato está em jogo, neste momento, é a tentativa de expulsar essa população do centro da cidade”, falou Falcone à Agência Brasil.
Durante uma mesa que discutiu a questão da moradia e territorialidade, Toni Zagato, mestre em políticas públicas e especialista em patrimônio cultural, reforçou que as remoções forçadas são estratégias que vem sendo utilizadas para a região central há muitos anos e por diversos e diferentes governos, sem resolver o problema.
“O Poder Público usa milhões para desapropriar. Nesse processo, ele despeja todo mundo e lacra os imóveis. Esses imóveis, muitas vezes, são considerados patrimônios culturais e não podem ser lacrados, que é uma descaracterização do imóvel. Eles nem disfarçam que isso é um teatro: eles deixam somente a fachada, feito uma cenografia de teatro, e atrás fazem uma construção que despejou 300 famílias e que não vão habitar mais esse lugar. Eles vão conceder isso para outras pessoas, que são de fora. Isso é um feudo, é arcaico, é colonial, e acontece no centro de São Paulo. Mas isso não aconteceria no bairro de Pinheiros [que concentra atualmente um grande número de novos empreendimentos na cidade], por exemplo”, argumentou.
Perpetuação da pobreza
“Estamos em uma guerra que não escolhemos lutar. Fomos jogados para essa situação. Essa guerra em que fomos colocados explica muita coisa sobre quem tem casa e quem não tem hoje em dia, quem tem acesso a banheiro e quem não tem”, falou Diva Sativa, que vive em uma ocupação no centro de São Paulo e integra a Bloc Feminista da Marcha da Maconha de São Paulo.
Diva relembrou do passado escravagista brasileiro e reforçou que a situação atual atinge principalmente a população negra.
“Quem foi empurrado para as áreas de risco porque estava aqui nesse país e não tinha estudo? Quem mora hoje em locais sujeitos a incêndios? Qual é a cor da pele dessas pessoas? Isso é um ciclo de perpetuação da pobreza e da discriminação. Esse ciclo que começou lá atrás, chega hoje na gente. Quando falamos hoje em droga, temos que fazer esse resgate”, destacou.
“Barril de pólvora”
Em entrevista à Agência Brasil, Aluízio Marino, pesquisador do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (LabCidade), lembrou que muitos projetos já foram construídos envolvendo a região central da cidade, mas ignoraram a população da região.
“São projetos que se dizem de renovação ou de revitalização que partem do pressuposto de que esse é um território sem vida, o que é uma grande inverdade. Esse território é historicamente ocupado por trabalhadores. É também um território popular. Esses projetos vêm em uma intenção de fazer um projeto de terra arrasada para remover e renovar a população que aqui o habita”, falou. “Isso ganha outros contornos, a partir da década de 90, com a chegada do fluxo da Cracolândia”, reforçou.
Segundo Marino, os projetos foram incapazes de problemas da região. O pesquisador ressaltou que dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que o fluxo de pessoas permanece inalterado.
“A gente continua com essas pessoas cada vez mais vulnerabilizadas e sendo alvos de violência. Temos também uma problemática séria que é o fato de que a presença de usuários, nessa condição, gera uma série de transtornos para comerciantes e moradores aqui do entorno. Então, esse território virou um barril de pólvora”, falou ele.
“Obviamente que precisamos de uma política que pense a questão da droga, mas isso tem que ser trabalhado nacionalmente, seja por meio da descriminalização do uso ou pelo enfrentamento do grande círculo do tráfico de drogas. A gente combater isso apenas nesse território, é pegar peixe pequeno e alimentar uma máquina de moer gente que não resolve o problema”, falou Marino. “Precisamos de uma arena pública para discutir a Cracolândia”, reforçou.
Agência Brasil
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