De um dia para o outro, o muro da escola onde estuda Victor Alves Pedroso, em Tramandaí (RS), ganhou uma explosão de cores. Tomado pelo grafite, ele poderá oferecer um respiro para os alunos em meio ao cotidiano dos estudos na cidade litorânea com pouco mais de 50 mil habitantes. E certamente proporcionará muitos comentários por um motivo: o trabalho foi realizado pela mão dos próprios jovens.
Aos 16 anos, Victor é filho de grafiteiro e desde cedo se envolve com a arte urbana. Mesmo para ele, foi algo especial. “É algo muito revolucionário para mim. Em Tramandaí, não existe muita abertura para evento que dá visibilidade ao artista. Então ter um evento que vem de fora e te dá tinta e oportunidade de botar seu trabalho na rua é utópico”.
A pintura foi resultado de mais um edição do Fábrica de Graffiti, iniciativa que nasceu em 2018 em Belo Horizonte. A programação foi encerrada com uma exposição na semana passada do trabalho de 200 adolescentes de escolas públicas que participaram de um curso gratuito composto por oito encontros.
Cada um deles pintou uma tela. O evento deixou ainda como legado a revitalização de uma pista de skate de 300 metros quadrados, sob coordenação do artista gaúcho Luis Flávio, também conhecido como Trampo. Uma pista menor também ganhou novas cores pelas mãos de seis artistas locais.
A proposta do Fábrica de Graffiti é humanizar espaços industriais e capacitar novos artistas. Cada edição envolve trabalhos de grande escala e uma programação cultural. Em Tramandaí, foi dado maior enfoque à proposta educacional. “O Fábrica de Graffiti é uma das primeiras iniciativas do país que saiu dos grandes centros urbanos e apostou na descentralização do grafite. Hoje existem muito mais projetos voltados para cidades do interior do que tinha antigamente”, comenta Paula Mesquita Lage, produtora executiva do projeto.
A iniciativa já passou por diferentes cidades como Contagem (MG), João Monlevade (MG), Feira de Santana (BA), Rio Claro (SP) e Barra Mansa (RJ). De acordo com Paula Lage, no imaginário coletivo, ambientes industriais são considerados locais isolados e sem movimento. “Tem muita vida ali. As pessoas trabalham, há um comércio local”, pondera. Segundo ela, o grafite também é uma aposta para estimular um ambiente mais criativo, o que é positivo para as fábricas que entregam seus muros para o festival.
Todas as edições do evento dialogam, de alguma forma, com a trajetória da arte urbana na capital mineira: entre os artistas convidados, sempre há nomes da cena belorizontina. Muros, viadutos, túneis, tapumes de construção, bancas de revista, fachadas de lojas, portões de garagem: o grafite ocupa cada vez mais espaços em Belo Horizonte.
O centro da cidade se tornou um ícone da arte urbana: fachadas de prédios imponentes foram preenchidas por uma diversidade de desenhos. A mureta da Rua Sapucaí, atrás da icônica Praça da Estação, se converteu em um ponto de contemplação: um mirante de arte urbana. Uma visita ao local passou a ser indicada nos mais variados guias de turismo da cidade.
A trajetória do grafite na capital mineira, assim como em todo o mundo, guarda peculiaridades envolvendo a disputa por novos espaços. Um marco dessa história são os grandes murais do francês Hugues Desmaziéres, que desembarcou na cidade nos anos 1990 trazendo na bagagem sua experiência em Nova Iorque.
Uma tese defendida em 2020 pela pesquisadora Elisângela Batista na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revela que seu trabalho sofreu críticas públicas de nomes famosos como o do arquiteto Gustavo Pena e do escultor Amilcar de Castro. Chegou-se a propor a criação de um conselho para analisar projetos e aprová-los, podendo fazer inclusive julgamento estético.
Surgido em 2017, o festival Circuito Urbano de Arte (Cura) se tornou o eixo de uma transformação: é o principal responsável pela expressiva expansão do colorido sobre o acinzentado urbano do centro da cidade. Através dele, pinturas gigantescas em fachadas de aproximadamente duas dezenas de prédios se tornaram um novo cartão postal de Belo Horizonte.
A iniciativa surgiu em meio a um movimento de ocupação da região central da cidade por jovens da periferia. O epicentro dessa mobilização é o baixio do Viaduto Santa Tereza, que se tornou palco de eventos da cultura hip hop e da arte urbana. O Cura realiza a partir do dia 15 de setembro sua sétima edição, sempre lançando novos artistas e também trazendo nomes de referência de outros estados do país e também de outros países. “Um dos nossos objetivos era colocar Belo Horizonte no mapa mundial do grafite. E essa transformação vai ficar aí, pelo menos uns 30 anos”, diz Jana Macruz, uma das idealizadoras do Cura, em um documentário veiculado na página do festival.
O festival contribuiu para dar projeção aos artistas e propor novas reflexões. O processo seletivo preserva a autonomia no processo de criação. “Tenho necessidade de falar sobre questões de valorização da mulher negra, dos povos originários, da nossa identidade real e tirar camadas que de padrões que colocaram na gente e que a gente acha que é o normal e não é”, diz Criola, nome artístico de Tainá Lima, uma das principais referências do grafite mineiro.
A inovação é constante: na sua sexta edição, o Cura levou o grafite não para o alto dos edifícios, mas para o chão: quem passa pela Praça Raul Soares hoje anda por cima de símbolos indígenas. O local, para onde convergem a Avenida Amazonas e outras importantes vias do centro de Belo Horizonte, foi requalificado pelas mãos de artistas de diferentes etnias: ganhou grafismos de origem marajoara e, em seu centro, um símbolo inca.
Inconformismo
Em todo o mundo, o espaço do grafite precisou ser conquistado. Historiadores apontam o final dos anos 1960 como marco da evolução do grafite. Nos protestos de maio de 1968, jovens de Paris recorreram ao spray como ferramenta de ativismo e de propagação de ideias. Posteriormente, jovens da periferia de Nova York atrelados ao movimento hip hop passaram a expressar sistematicamente seu inconformismo nos muros da cidade. Como precisavam agir de forma rápida para evitar flagrantes policiais, o spray se mostrava conveniente.
“O grafite não nasce com o hip hop. Ele é anterior. A cultura hip hop se apropria da cultura do grafite e a dissemina pelo mundo. O grafite se encaixa como um dos quatro elementos do hip hop de uma forma muito orgânica”, pontua Comum, nome artístico de André Machado. Dessas manifestações, se desdobram a pichação e o grafite. A distinção entre ambos ganhou força no Brasil. Em outros países, o grafite é concebido como um termo geral e a pichação uma vertente. “São expressões de uma mesma cultura urbana”, avalia Comum.
A pichação, designada na linguagem das ruas através da grafia pixação ou simplesmente pixo, envolvem palavras e frases grafadas de forma estilizada. Ela geralmente é considerada como um ato de confrontação e provocação da autoridade, sendo encarada pelo poder público como vandalismo desprovido de uma dimensão artística.
Podem carregar posicionamentos políticos, protestos, insultos e declarações de amor. Também são comuns assinaturas pessoais ou de grupos, muitas vezes com intuito de expressar demarcação de territórios e de rivalizar com outros pichadores que competem pelos locais de acesso mais difícil. “É uma forma desses jovens da periferia dizerem: eu estou aqui, eu existo”, observa Comum.
Já o grafite agrega diferentes técnicas: pode combinar, por exemplo, a tinta látex, os rolinhos e o estêncil junto com o spray. A atividade vem obtendo visibilidade e reconhecimento da sociedade pela sua dimensão artística e pelas reflexões que promove. Em torno dela, formou-se uma comunidade de artistas disposta a trabalhar buscando autorização para pintar os muros, sem deixar de abordar temas políticos e sociais. Eles também reivindicam o grafite como a arte mais democrática: nas ruas, exposto ao olhar de todos, pode ser interpretado por cada um sob múltiplas perspectivas.
Por vezes, o grafite é enaltecido como antídoto contra a pichação. As fronteiras que os separam, no entanto, não são rígidas e são manifestações que dialogam entre si, havendo inclusive atores que se expressam das duas formas. É comum ver muros nos centros urbanos em que os dois tipos de manifestação aparecem sobrepostos. Além disso, as caligrafias estilizadas transitam entre ambos: os grafiteiros dão tridimensionalidade a elas e as usam com diferentes intuitos, inclusive para assinar seus murais.
Descriminalização
No Brasil, o spray foi adotado na década de 1970 pelos movimentos de contestação à ditadura. Nas periferias, as torcidas organizadas de clubes de futebol tiveram um papel importante na disseminação da pichação. Como observa Paula Lage, embora seja uma forma global de expressão, estas manifestações se moldam atreladas à cultura local. Nos anos 1980, o grafite já chamava atenção em São Paulo. Mas os artistas sabiam que precisavam ser ágeis ao pintar muros ou poderiam ser detidos pela polícia.
O Artigo 65º da Lei de Crimes Ambientais que entrou em vigor no país em 1998 oficializou a repressão que já acontecia nas ruas: pichar e grafitar foram consideradas práticas passíveis de detenção por um período de três meses a um ano. Se o ato fosse realizado em monumento ou edifício tombado, a pena mínima deveria ser de seis meses.
Em 2011, a legislação foi alterada com a exclusão do verbo grafitar e a inclusão de um novo parágrafo: “Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional”.
Apesar da descriminalização, artistas avaliam que o preconceito ainda existe, sobretudo na associação com vandalismo. “O agente da lei adota um critério prático: tem ou não tem autorização. Mas historicamente o grafite nunca dependeu de autorização. A transgressão é uma característica do grafite. Então a descriminalização da forma como foi feita cria uma situação onde parte do grafite é aceito e parte continua sendo criminalizado”, avalia Comum.
No início de 2017, o noticiário nacional deu espaço à batalha travada em São Paulo em torno do grafite. Sob pretexto de acabar com pichações, a prefeitura havia determinado a pintura dos muros da Avenida 23 de Maio. Na intervenção, foram apagados murais que se constituíam como uma emblemática amostra da arte urbana da capital paulista.
Na época, o então prefeito, João Dória, vestiu macacão e máscara e se uniu aos pintores contratados que cobriram de tinta cinza os desenhos coloridos. A controvérsia foi parar nos tribunais, gerando uma guerra de liminares. Nas ruas, a reação dos artistas não demorou e novos grafites reapareceram.
A capital paulista é precursora no movimento de grafite no país e é onde reside alguns artistas brasileiros de projeção mundial como Otávio Pandolfo e Gustavo Pandolfo, conhecidos comos Os Gêmeos, e Eduardo Kobra. O trabalhos de ambos chegou aos Estados Unidos e à Europa. Na última década, o grafite passou aos poucos a ser usado como instrumento para embelezar locais da cidade, a partir de projetos públicos lançados de forma pontual. Mas a relação com as autoridades continuou marcada pela conflito como ilustra o episódio de 2017.
Dois anos antes, a prefeitura de Belo Horizonte, então comandada por Márcio Lacerda, tirava do papel o projeto Telas Urbanas, voltado para requalificação e transformação dos espaços públicos e privados urbanos por meio da arte mural. Através de editais públicos, selecionavam-se propostas para a produção de intervenções artísticas em espaços urbanos da cidade.
Márcio Lacerda tinha uma relação turbulenta com alguns grupos culturais da cidade, sobretudo com os blocos que impulsionaram na época a retomada do carnaval de rua na capital mineira, driblando regras estabelecidas pelo município. Apesar do estímulo ao grafite sugerir que a gestão municipal da capital mineira apostava em um caminho diferente de São Paulo, também houve atritos com a comunidade de artistas.
Convidado para assumir a curadoria do Telas Urbanas, Comum conta que os cachês previstos eram baixo e que o projeto parecia voltado para um propósito de de limpeza urbana: grafitar muros tomados pela pichação. Quando ele assumiu, o edital foi cancelado e refeito.
“Conseguimos realizar um projeto mais identificado com o grafite”, conta. Mesmo assim ele lembra que existiram tensões e que alguns murais foram pichados depois de concluídos. Ele encara a reação como uma expressão dos artistas. “Deram sua resposta”, avalia.
Profissão
Assim como o Cura e o Fábrica de Grafitti, Belo Horizonte é hoje sede de outras iniciativas envolvendo o grafite como o Projeto Gentileza e o Museu da Rua. São iniciativas que dependem do aporte de recursos públicos ou de patrocínio privado. Paula Lage observa que a visão de cada governo influencia o nível de investimento cultural e vê um esvaziamento dos editais atrelados à Lei Federal de Incentivo à Cultura no último período.
Por outro lado, ela crê que o poder público, nas capitais, já compreende que a arte urbana contribui para deixar menos hostil o deslocamento pelas vias públicas, geralmente marcadas pelos engarrafamentos e pelo adensamento imobiliário.
Esse novo entendimento acompanha a evolução do grafite não apenas como arte, mas como negócio: junto com aporte de recursos públicos, o patrocínio privado também avançou. O desembarque da Fábrica de Grafitti em Tramandaí foi possível através de financiamento do Instituto EDP, braço social da EDP Brasil, robusta empresa do setor energético.
Há um entusiasmo das marcas, que buscam se capitalizar em cima do grafite: elas apostam em novas linguagens para dialogar com novos públicos. Para Paula Lage, foi essa conversão do marginal para o comercial que abriu espaço para que surgissem diversos trabalhos de grande escala, como as pinturas que preenchem integralmente paredes de edifícios altos.
Ela observa que é uma evolução contínua, na qual o grafite vem conquistando novos espaços e já foi absorvido também pelas galerias de arte. Esse ambiente gera oportunidades e melhora a remuneração dos artistas. Além de garantir fonte de renda através dos cachês, os festivais contribuem abrindo novas frentes de trabalho: o Fábrica de Grafitti é um exemplo de como grafiteiros também vem se desenvolvendo como professores e arte-educadores.
“Ainda aparecem pessoas dizendo ‘tenho um muro para doar’. Mas percebo que os artistas estão se valorizando cada vez mais. Estão mais reticentes a realizar um trabalho apenas por divulgação. Há mais consciência e um movimento constante para validar o grafite como uma profissão”, diz Paula Lage.
Agência Brasil
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