Vencedor do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como Melhor Espetáculo de 2022, o musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas encerra a temporada com casa cheia neste fim de semana no Sesc Bom Retiro, no centro de São Paulo. Com ingressos esgotados para as apresentações deste sábado (3) e domingo (4), a peça narra a trajetória da militante Brenda Lee, conhecida pelo seu pioneirismo na defesa de pessoas que viviam com o HIV/Aids, em uma época na qual o estigma era ainda maior.
O musical recebeu o Prêmio APCA de Melhor Espetáculo de 2022. Também teve reconhecimento pelo Prêmio Bibi Ferreira de Peça Revelação em Musicais, Melhor Atriz Coadjuvante para Marina Mathey e Melhor Roteirista para Fernanda Maia, responsável pelas letras e pela dramaturgia.
Luta e acolhimento
Nos anos 1980, surgia a epidemia de Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Aids) e, com ela, ganhava notoriedade na capital paulista a travesti Brenda Lee, por oferecer a outras travestis, mulheres transexuais e gays de baixa renda o acolhimento que quase ninguém ousava dispor, uma vez que o estigma social quanto à infecção ficou fortemente reservado à comunidade LGBTQIA+. Como se sabe, famosos como os cantores Cazuza e Renato Russo sofreram discriminação por serem soropositivos. A história de Brenda Lee faz pensar também, além do efeito de segregação, até que ponto a desinformação em torno do tema induziu muitas pessoas a imaginar que somente a população LGBTQIA+ contrairia o vírus, levando a parcela heterossexual a se descuidar, como acontece ainda hoje.
Brenda Lee tinha como nome de batismo Cícero Caetano Leonardo, nasceu em Bodocó, Pernambuco, em 1948, e adotava como nome de dona de pensão “Caetana”. Em uma fase em que a ignorância e a marginalização prevaleciam, ela fundou a primeira casa de apoio a pessoas que vivem com HIV/Aids do Brasil. Apelidada de “anjo de guarda das travestis”, Brenda as recebia em seu sobrado, no bairro Bela Vista, com “carinho, cuidado e muita mão de obra”, como ela mesma define no documentário Dores de amor, em que assume também que nem tudo era um mar de rosas e que havia instantes de conflito, como em toda relação humana.
As travestis, sobretudo, tinham dificuldade para alugar um imóvel ou quarto. Por isso, muitas vezes o jeito era recorrer às cafetinas, outras mulheres que viviam à margem da sociedade e sublocavam seus imóveis a elas. Assim, além da pensão, havia a possibilidade de receber cuidados no lugar, na condição de pessoa que vive com HIV/Aids. “Pelo que consta dos depoimentos, e há muita controvérsia neles, muitas pessoas dizem que ela não explorava as pessoas, ela era uma cafetina também fora da curva, porque não arrancava dinheiro das suas filhas”, diz Fernanda Maia, roteirista e diretora do musical.
Uma vez na casa de Brenda Lee, por exemplo, as travestis passavam a se denominar de “filha de Brenda”, como em outros locais parecidos, de acordo com a região da cidade. “Justamente porque são pessoas que saíram da família muito cedo e precisaram estabelecer vínculos e laços familiares outros, que não fossem da sua família de sangue”, observa a diretora. “Ela era uma pessoa muito aguerrida e consta que andava armada – era o jeito que se dava, não adianta, era noite, uma situação muito violenta. Andava armada e consta que ninguém mexia com as filhas da Caetana. Muitas queriam ser filhas da Caetana, porque sabiam que estariam bem protegidas.”
No mesmo documentário, Brenda classifica a condição de travesti como “pesada”. Pela obra fílmica, percebe-se como as identidades de gênero transexual e travesti e as orientações sexuais foram se consolidando gradualmente, pois em sua fala misturavam-se. Do mesmo modo, em cada uma de suas palavras nota-se a carga de medo da perseguição que historicamente se praticou contra esse grupo minorizado. Ali também se vê, de modo evidente, tanto a coragem e o carisma de Brenda Lee como sua maneira despretensiosa.
Ela narra que, quando era adolescente, só tinha duas opções drásticas se a família descobrisse sua homossexualidade. “Naquela época, eu era uma pessoa muito frágil, a mente não estava com a personalidade formada ainda, então eu tinha dificuldade de encarar a família. Se, por acaso, algum dia, meu pai, minha mãe ou algum dos meus irmãos descobrisse que eu era homossexual, eu já tinha até por escrito que eu me suicidaria, de tanta vergonha que eu tinha. Quer dizer, eu não ia assumir mesmo. Com essas dificuldades e como é uma coisa que mexe com o sangue da gente, e a gente sempre tem que fazer aquilo que a gente tem vontade, eu percebi que, aos poucos, alguém ia descobrir e provar que eu era homossexual. Então, o que eu fiz? Eu tive que fugir fora da família, depois me tornei uma travesti e foi aí que eu encarei a realidade. Hoje em dia, estou aqui para encarar qualquer tipo de vida”, diz Brenda Lee no documentário, finalizando o trecho da entrevista com um sorriso.
Apagamento
A parceria entre Fernanda Maia e o compositor das canções do musical, o pianista Rafa Miranda, começou em 2016. Naquele período, ambos tiveram contato com pessoas da Federação Espírita que atuaram na casa de apoio de Brenda Lee, como voluntários. “Ela começou a me contar fatos incríveis, interessantes, como a Brenda dava a cama dela para pessoas que chegavam e ia dormir no sofá. Ou como a Brenda lavava a roupa das pessoas que estavam ali, fazia comida para as pessoas, ajudava a dar banho. E como ela, sendo uma travesti na década de 80, quando as travestis sequer saíam às ruas durante o dia, foi enfrentando o poder público. Fez uma parceria com a Secretaria de Saúde e foi tendo conquistas muito importantes para essa população. Essa senhora foi me falando, esse país não fez justiça à Brenda Lee, ela precisa de um musical sobre ela e quem tem que escrever é você”, conta Fernanda, sobre uma senhora que fez voluntariado no local.
Brenda Lee, a mulher trans que resistia e não se sujeitava, passou a encantar Fernanda, que resolveu aprofundar a pesquisa sobre a militante e acabou se defrontando com a falta de informações sobre ela. “Fiquei fascinada pelas histórias e também fiquei muito surpresa. Quer dizer, não digo surpresa. Eu constatei que não se tinha muitos registros sobre ela e o trabalho dela, justamente porque ela era uma travesti, fazendo parte de uma população marginalizada. Então, não havia muitos registros formais sobre o trabalho dela. Comecei a estudar e a colher depoimentos de pessoas que a conheceram e, a partir daí, comecei a ficar cada vez mais interessada no assunto e decidi escrever o musical”, comenta.
Para Fernanda, a homofobia e, mais tarde, a transfobia, são elementos claros na vida de Brenda Lee e se manifestam de diversas formas, como nos obstáculos que ela enfrentou para ascender profissionalmente. “Ela era uma pessoa muito dedicada ao trabalho, mas nunca conseguia crescer, justamente por ser vítima da homofobia. Então, ela resolve que nunca mais vai trabalhar para ninguém. Ela diz ‘nunca vi nenhuma travesti morrer de fome’. Resolve concluir sua transição e vai se prostituir, o que, na época, era uma das únicas opções para uma travesti. Elas não tinham acesso à educação, ao mercado de trabalho, a cuidados, a nada quase. Como, ainda hoje, é muito difícil. Mas, naquela época, era muito pior. Ela tinha um temperamento muito forte. E começou a defender suas amigas, principalmente da ação da polícia, que, naquela época, perseguia, torturava e até matava as travestis. Ela foi estudando, conseguiu estudar de uma maneira muito inconstante, porque só conseguia estudar enquanto estava trabalhando”, relata, acrescentando que Brenda Lee se prostituiu também na França, de onde foi deportada.
“Ela conseguiu ter um patrimônio, ela tinha uma inteligência financeira, eu imagino. Ela vem com certo dinheiro e vai comprando algumas coisas para ela. Ela comprou um posto de gasolina, montou um salão de cabeleireiro. Alguns apartamentos. Ela tinha carro. Ela conseguiu ter um patrimônio. Isso também era muito raro, a não ser as [travestis] que iam para a Europa”, pontua Fernanda.
Segundo a dramaturga, Brenda Lee teria vendido o posto de combustível para ajudar a manter a casa de apoio e concluiu o primeiro ano da graduação de Direito. “Isso faz com que ela vá às delegacias brigando com os delegados, para soltar as amigas”, acrescenta a dramaturga.
Operação Tarântula
No final da década de 1980, à medida que aumentava a circulação do HIV pelo Brasil e pelo mundo, nas ruas de São Paulo o efetivo da Polícia Civil criminalizava a própria existência das travestis. Segundo Fernanda, o que a Operação Tarântula fazia era colocar um alvo no corpo das travestis da capital, promovendo uma verdadeira caça a elas, concedendo licença aos agentes policiais para conduzir um processo de “higienização” da cidade, expulsando quem fosse considerado um “mau elemento”.
“Nada mais é do que a polícia perseguindo, atirando, metralhando e matando as travestis. Porém, com uma diferença: acompanhada de jornalistas, que retratavam, registravam e depois publicavam nos jornais. E a polícia fazia uma propaganda de que estaria limpando as ruas de São Paulo”, afirma Fernanda. “Com o endosso da imprensa, do poder público e da sociedade”, acrescenta a diretora.
De acordo com depoimento de Brenda Lee, revisitado por Fernanda, travestis da casa dela foram atingidas pelos disparos da polícia. Uma delas morreu, uma segunda ficou com danos de saúde irreversíveis e outras ficaram feridas. “Ela vai denunciar. Óbvio que ela sabe que não vai ter o respaldo da sociedade, que ela não vai ter a aprovação da opinião pública, mas, mesmo assim, ela não se abate, ela vai e denuncia. Um dos repórteres chega e pergunta: ‘você vai enterrar? O que vai fazer com a que morreu?’ Ela fala: ‘eu vou fazer o enterro dela e essa menina que ficou inválida, nós vamos cuidar, vivemos em uma comunidade e vamos cuidar dela”.
Pela fibra e luta de Brenda é que o Palácio das Princesas conseguiu firmar um convênio com a Secretaria Estadual de Saúde, em 1988. “Como a Aids era um assunto que estava chamando muito a atenção da imprensa, um assunto que rendia muitos holofotes, muitas matérias sensacionalistas, um repórter pergunta a ela: ‘e se aparecer alguém com Aids na sua casa?’ Então, ela declara publicamente, na imprensa, que, se aparecesse alguma pessoa com Aids e não tivesse aonde ir, que poderia ir para a casa dela, que ela cuidaria sem nenhuma discriminação. Essa notícia vai parar nas mãos do doutor Paulo Roberto Teixeira [criador do Centro de Referência e Treinamento de Aids de São Paulo]”, adiciona Fernanda.
Com a ponte aberta por Teixeira, a casa de Brenda Lee, assim, se aproxima da Secretaria Estadual de Saúde. O médico Paulo Roberto Teixeira foi, como ela, visionário em ações de enfrentamento ao HIV/Aids, no estado de São Paulo, no Brasil e no mundo, sendo o fundador do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, um dos criadores do Conselho de Administração do Fundo Global de Tuberculose, Aids e Malária e atuante na Organização Mundial da Saúde.
Além de inúmeros trabalhos acadêmicos que denunciam e esmiúçam a Operação Tarântula, iniciada em 27 de fevereiro de 1987, enquanto resposta institucional, o tema é abordado no documentário Temporada de Caça, da diretora Rita Moreira. O filme foi lançado em 1988 e ficou conhecido por um trecho da abertura, em que uma repórter pergunta a uma transeunte se ela é a favor do assassinato de pessoas homossexuais, ao que responde, sem nenhum constrangimento, afirmativamente.
Ódio constante
Conforme destaca a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) na mais recente edição do relatório sobre assassinatos de pessoas transexuais e travestis no Brasil, o ódio a esse grupo ainda permanece. “Em 2022, tivemos pelo menos 151 pessoas trans mortas, sendo 131 casos de assassinatos e 20 pessoas trans suicidadas. A mais jovem trans assassinada tinha 15 anos, e vimos um acirramento na patrulha contra crianças e adolescentes trans, sendo inclusive vítimas de violências dentro do ambiente escolar. E embora haja uma leve queda em relação a 2021, o perfil das vítimas se manteve o mesmo. Chama atenção o país figurar novamente como o que mais consome pornografia trans nas plataformas digitais de conteúdo adulto no mesmo momento em que o Brasil figura como o país que mais assassinou pessoas trans pelo 14º ano consecutivo”, escreve a entidade.
“Houve ainda 142 violações de direitos humanos e os casos de impedimento de uso do banheiro foram os que mais tiveram destaque nessa edição. Seguimos vendo a política estatal de subnotificação da violência lgbtifóbica, e os estados insistem em não levantar os dados sobre violência contra a população LGBTQIA+, em especial os assassinatos. Mantém-se a falta de dados sobre o perfil dos suspeitos, no mesmo momento em que os nomes de registro das vítimas são expostos, sem menção aos seus nomes sociais”, destaca o relatório.
Brenda Lee morreu aos 48 anos, em 28 de maio de 1996, assassinada a tiros. O principal suspeito apontado na época era um funcionário da casa de apoio que ela comandava. Especula-se que ele tenha tirado sua vida no contexto de um golpe financeiro. Brenda Lee foi encontrada no interior de uma Kombi, estacionada em um terreno baldio. Em 2008, foi criado o “Prêmio Brenda Lee”, que contempla personalidades que se destacam na luta contra o HIV e prevenção da Aids.
Agência Brasil
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