O sonho da estudante Mariana*, de 20 anos de idade, ganhou cores vivas, vibrantes, algo antes inimaginável. Ela vai terminar o ensino médio agora no final de 2021. Quando podia imaginar que um dia poderia voltar à escola? Mais do que isso: emociona-se quando pensa que é possível criar com qualidade os três filhos, graças à evolução da ciência e ao apoio de uma entidade. Ela deseja, para o futuro próximo, uma profissão de servir, salvar, dar a mão… O sonho é entrar em uma faculdade e ser enfermeira. Poder ajudar outras pessoas, assim como foi com ela, resgatada de um pesadelo.
Mãe de três filhos e vítima de um estupro, quando tinha apenas 16 anos de idade, ela temeu sobre o próprio futuro e das crianças quando descobriu que havia sido contaminada pelo vírus HIV, que pode causar a aids. “Praticamente, estou a um passo de realizar meus sonhos. O que aconteceu comigo foi um milagre”, emociona-se a jovem. Antes, moradora da Cidade Ocidental (GO), município que fica no Entorno do Distrito Federal, ela foi acolhida pelo Instituto Vida Positiva, em Brasília, entidade que completa 15 anos, nesta quarta, e que nasceu com a intenção de apoiar crianças e adolescentes contaminadas pelo vírus.
A organização não governamental (ONG), que funciona em uma casa alugada no bairro da Asa Sul, foi criada em 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta Contra a Aids. A instituição cuida, em sua casa de apoio, de 27 jovens, incluindo crianças e adolescentes, e seus familiares. Ao todo, presta assistência a cerca de 300 famílias, com distribuição de cestas básicas, roupas, utensílios e eletrodomésticos. Distribui ainda mais de 24 mil lanchinhos por ano para pacientes que fazem exame de carga viral em laboratórios de cinco hospitais públicos do Distrito Federal.
A pior doença
A fundadora e coordenadora do Vida Positiva, Vicky Tavares, de 72 anos, entende, porém, que, além de garantir as condições essenciais para essas pessoas, uma função fundamental do instituto é buscar direitos assistenciais, o que inclui informação e a luta contra um adversário que permanece muito vivo em 2021, e ainda mais poderoso que o vírus, o preconceito. “Essa é uma doença muito pior”, afirma.
“Chego a dizer que, sobre essa situação, muito pouco mudou. Há pessoas preconceituosas por todos os lugares. Mesmo com tanta evolução dos tratamentos de saúde e da ciência, falta de esclarecimento e insensibilidade são realidades, ainda hoje”, explica. Olhares, comentários e até piadas fazem parte de uma violência que se mostra velada (e nem sempre escancarada), como explica a ativista. Ela busca todas as oportunidades para explicar a vizinhos, amigos, doadores, empresas apoiadoras que a bem sucedida política pública no país de distribuição de medicamentos garante vida com qualidade aos pacientes e que, por vezes, a carga viral se torna indetectável.
“As unidades públicas de saúde daqui têm garantido todos os remédios necessários a pacientes que tiveram detectado o HIV. Essa é uma grande conquista e que mais gente deveria saber”. Vicky, que é paraense e era empresária da área da moda, criou a entidade depois de perder um grande amigo para a aids, o cabeleireiro Duda. Antes de criar a própria entidade, atuou em uma ONG na região administrativa de Taguatinga (DF), voltada especificamente para cuidar de crianças com o HIV. Quando essa instituição iria encerrar essas atividades, conseguiu autorização para criar o Vida Positiva.
“Eu passei a me dedicar integralmente a essa causa. Mostrar que podíamos nos abraçar, dividir os pratos, podíamos nos beijar. Afeto e informação são fundamentais”.
Ela recorda que o amor ao trabalho voluntário surgiu quando ela era apenas uma adolescente em Belém, e uma tia (Cecília) percorria com ela áreas periféricas para ajudar quem estava com fome ou sem assistência de saúde.
Pandemia
Com a pandemia, a situação se agravou para a entidade, que perdeu cerca de 40% em doações. A voluntária da entidade, a cabeleireira Daniela Gomes, de 44 anos, que participa das atividades como captadora de doações por telemarketing, lamenta que, com a crise, ou a entidade perdeu apoiadores ou reduziram em quantidade de recursos.
Entre as conquistas recentes, Daniela destaca que o isolamento social não impediu as crianças de estudarem. A entidade conseguiu apoio junto à Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL), que cedeu computadores para que as crianças pudessem acompanhar as aulas on-line nos últimos dois anos de distanciamento.
Segundo Vicky Tavares, as atividades necessitam ainda de voluntários na área de educação que possam eventualmente ajudar a tirar dúvidas nas diferentes disciplinas.
Roda de conversas
Outra voluntária, a administradora Carolina Pereira, de 43 anos, no Vida Positiva faz as vezes diariamente de contadora de histórias. “São crianças com muitas necessidades de conversar e de ter atenção. Nós cantamos, conversamos. Para mim, nesses 15 anos, tem sido uma alegria inexplicável”.
As histórias e as conversas ganham diferentes temas de acordo com as idades dos jovens. “Adolescentes têm outras dúvidas e é importante que possamos trocar impressões”. A equipe conta ainda com apoio psicológico e de assistência social para informar sobre direitos de benefícios que pessoas com HIV têm no país. “Resguardar os direitos de pessoas com HIV é uma ação que envolve burocracias, mas fez com que eu aprendesse muito”, garante a assistente social Laís Dantas. Ela tem a missão de viabilizar documentações e conhecer as realidades de cada um dos atendidos para que os benefícios saiam do papel.
Farofa
Para atender as necessidades financeiras da entidade, além das doações, a equipe criou uma forma alternativa de conseguir recursos: a venda de uma “farofa” solidária, que é comercializada em feiras e nas redes sociais também. Um detalhe é que o produto não é apenas no sabor tradicional, mas também oferecido em 20 versões, incluindo de torresmo, de damasco e até chocolate (com pimenta ou sem).
A expectativa é que, com a proximidade do final de ano, as vendas da farofa e também as doações aumentem. “Na época de Natal, as pessoas ficam mais sensíveis e recordam. O desafio é conscientizar de que precisamos de apoio sempre”, afirma a voluntária Daniela Gomes.
O produto, em seus diferentes sabores, é todo feito na cozinha da ONG. “Eu sempre gostei de cozinhar e me perguntava o que eu poderia fazer que poderia ser vendável. O que eu poderia fazer para ajudar essas pessoas? Minha família sempre elogiou a farofa que eu fazia em casa. Achei que podia ser viável. E passamos a inventar. O trabalho foi garantir mais ingredientes e aumentar as panelas. Importa aqui compartilhar amor entre a gente. Essa é a receita da farofa”, ressalta Vicky Tavares. Farinha, manteiga, cebola e bons sentimentos.
Os três filhos da estudante Mariana* (de 4, 3 e 2 anos) são também fascinados pela farofa, ingrediente obrigatório na hora do almoço (antes ou depois também).. Nada sobra no prato. As crianças preferem a de chocolate. No sorriso, explicam a razão: “é mais doce”. A mãe sorri. Ela não imaginava que um dia a vida poderia ser doce.
O nome da entrevistada foi alterado para manutenção da privacidade.
Agência Brasil
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