“A gente já mudou o nome”, diz, orgulhosa, a jornalista Leonor Costa, ao informar o nome completo da filha Safyra, de 6 anos, adotada em 2023. A adoção, além de simplesmente ter dado um lar e uma família para a Safyra, evitou que a menina vivenciasse uma situação traumática: o retorno a um abrigo após ter sido devolvida por outra mãe adotiva.
Moradora de Brasília, a jornalista conta que Safyra já tinha passado por dois abrigos e estava vivendo com uma “família acolhedora” – um programa que insere a criança de forma provisória em um lar até ela ser adotada definitivamente. “É muito melhor que estar em um abrigo”, diz.
No começo de 2023, uma pretendente iniciou, com aval da Justiça, um período de aproximação com a menina. O processo começa com visitas e vai avançando a convivência gradativamente. Cerca de um mês depois do primeiro contato e, após ter levado a Safyra para passar um fim de semana em casa pela primeira vez, a potencial mãe comunicou à Vara da Infância e da Juventude que tinha desistido do processo.
“A Safyra já a estava chamando de mãe”, conta Leonor à Agência Brasil.
A menina voltou para a família acolhedora, no entanto com um novo problema. Estava se esgotando o tempo em que ela poderia ficar no lar provisório. Se não fosse adotada em alguns meses, voltaria para um abrigo. “Voltar ao abrigo seria o pior sofrimento que essa criança poderia passar”, afirma Leonor.
Foi nesse ínterim que a jornalista recebeu a ligação da Vara da Infância indicando que havia uma criança dentro do perfil que ela tinha indicado ainda em 2017, quando se dispôs a entrar na fila de adoção.
Em 2018, Leonor descobriu que o diagnóstico de infertilidade que tinha recebido de um médico era errado e acabou engravidando. Mesmo assim, não retirou o nome da fila de espera para adoção.
“A gente disse que sim, que seguiria com o processo”, relembra ela da resposta que deu à Vara da Infância.
Casos desfeitos
Casos de interrupção de processos de adoção, como o que envolveu Safyra antes de se unir a Leonor, fazem parte de uma estatística revelada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de transparência e controle do Poder Judiciário. De cada 100 crianças em guarda provisória de processo de adoção no Brasil, aproximadamente oito tiveram o processo desfeito. Isso representa 1.666 crianças. Foram analisados dados partir de 2019.
O estudo inédito foi feito com base em entrevistas com equipes de unidades de acolhimento, representantes do Poder Judiciário envolvidos em processos adotivos e dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), que contabilizou 21.080 crianças e jovens em processo de guarda provisória desde 2019. Ou seja, o percentual de interrupções foi de 7,9%.
No caso de Safyra, o desejo de Leonor impediu que a menina fosse para um abrigo.
“Deu certo. Estamos com ela já tem um ano. Agora saiu a sentença, ela já é nossa filha perante o Estado. Ela já tem a nossa certidão, já é nossa filha definitivamente”, comemora. “A gente já a conquistou, ela está bem ambientada, entendeu que essa é a família dela, chama minha outra filha de irmã o tempo todo, mamãe e papai”, conta a mãe.
Leonor explica que Safyra é neurodivergente. Ela acompanhava a menina na terapia, quando conversou com a Agência Brasil. “A gente está vendo se é um grau de autismo, de deficiência intelectual ou de TDAH [Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade]”, descreve.
“Agora ela está supertranquila, mas ela era uma criança muito agitada”, diz. “A moça não conseguiu, disse que não ia dar conta, ela é sozinha. Eu não condeno”, conta ao se referir ao processo anterior de adoção de Safyra.
A pesquisa do CNJ está disponível neste endereço e foi apresentada em um seminário online no último dia 21. Clique aqui para assistir à íntegra do seminário.
O Sistema Nacional de Adoção foi criado pelo CNJ, órgão de transparência e controle do Poder Judiciário, e traz dados como os perfis de crianças aptas à adoção e dos pretendentes.
No universo avaliado, de 21.080 crianças, não estão incluídas as que passam pela chamada “adoção pronta”, casos que costumam ocorrer dentro da própria família, em que o adotante não precisa ter cadastro prévio no SNA. Em alguns casos, por exemplo, os pais biológicos decidem passar a guarda da criança para terceiros sem notificarem a Justiça.
Adoção legal
No processo de adoção legal, os pretendentes precisam passar por etapas para se tornarem habilitados. Eles são submetidos a análise de documentação, avaliação psicossocial e precisam participar de um programa de preparação para adoção.
Uma vez habilitados, entram na fila do SNA. Após esse cadastramento, ocorre a vinculação, quando o perfil de criança indicado pelo pretendente corresponde ao perfil de uma criança em unidade de acolhimento, respeitando a fila no cadastro. Até esse momento, crianças e adultos ainda não se conhecem.
A partir de então, o pretendente passa a conviver com a criança de forma monitorada pela Justiça e pela equipe técnica, em um processo de aproximação. O convívio é gradual e se realiza por meio de visitas ao lugar em que a criança vive ou por meio de pequenos passeios.
Se a aproximação se mostrar bem-sucedida, começa o estágio de convivência, em que a criança ou o adolescente passa a morar com o postulante. Ainda há o acompanhamento da equipe técnica do Poder Judiciário. O estágio de convivência tem prazo máximo de 90 dias, prorrogável por igual período.
O levantamento do CNJ também contabilizou casos de reversões que aconteceram depois de a adoção ter se tornado definitiva. Foram 139 registros em um universo de 17.946 (0,8%).
A legislação brasileira diz que adoção é um ato irrevogável. No entanto, o estudo do CNJ ressalta que pais adotivos que optam por voltar atrás na decisão de adotar uma criança conseguem desfazer o compromisso.
“O Juízo da Infância acaba atendendo a esse pedido e reacolhendo a criança”, frisa o estudo, ressaltando que a decisão é baseada no bem-estar dos adotados.
Desistência durante guarda
O levantamento do CNJ não aponta objetivamente o motivo que levou os pais adotivos a desistirem da adoção, mas mapeou o perfil das crianças que tiveram que voltar ao sistema de adoções. Para buscar possíveis indícios de motivações, os pesquisadores compararam o perfil das pessoas adotadas com as que tiveram o processo revertido.
A análise apontou que os perfis de crianças que voltaram aos pontos de acolhimento se diferenciam em questões como idade, diagnóstico de deficiência mental, problema de saúde tratável e uso contínuo de medicamentos.
Por exemplo, a proporção de crianças com mais de 5 anos no grupo das que tiveram o processo interrompido é muito maior que entre as adotas. Pessoas com mais de 5 anos são 22,7% dos casos de adoção e 54,1% dos casos de processos desfeitos.
Leonor faz parte de uma comunidade de pais adotivos e relata o caso de adoção de uma criança de 9 anos que terminou em retorno para unidade de acolhimento. “A criança começou a querer muito a presença da genitora”. Segundo ela, os pais adotivos insistiram no processo, mas não foi possível demover a criança da ideia de voltar para o abrigo. “É um trauma para todo mundo”, constata.
Em relação a deficiência mental, o CNJ mostra que 2,5% dos adotados apresentavam diagnóstico, enquanto entre os que tiveram o processo desfeito, eram 4,4%. Em relação ao uso de medicamentos, os percentuais são 7,5% entre as crianças adotadas e 17,3% entre as que voltaram para abrigos.
“Se tiver transtorno mental, alguma deficiência intelectual ou algum nível de autismo, isso é um fator que pesa e que as famílias não conseguem sustentar esse desejo da adoção de crianças com esse perfil”, respondeu aos pesquisadores uma equipe técnica de psicologia.
Em relação a cor, crianças negras (conjunto de pretas e pardas) foram 59% das adotadas e 68% das com processo desfeito. Por outro lado, as brancas representam 39,6% das adotadas e 31,3% das que voltaram para o acolhimento.
Desistência após conclusão
No grupo das crianças que tiveram que retornar a abrigos após a conclusão do processo de adoção, ou seja, já depois da guarda provisória, pessoas com mais de 15 anos são 9,4% dos casos de adoção e 46,2% dos casos revertidos.
Em relação a deficiência mental, 2% dos adotados apresentavam diagnóstico, enquanto entre os que voltaram para abrigos eram 10,1%.
Em relação ao uso de medicamentos, os percentuais são 7,9% entre as crianças adotadas e 22,3% entre as que tiveram o processo revertido.
Em relação a cor, crianças negras (conjunto de pretas e pardas) foram 57% das adotadas e 63% das que retornaram para o acolhimento. Por outro lado, as brancas representam 39% das adotadas e 34% das que voltaram.
Consequências
Além de apresentar perfis, a pesquisa indica encaminhamentos para que ocorram menos revogações de processos por parte dos adotantes, uma vez que esses episódios afetam a saúde psicológica e emocional das crianças e adolescentes.
Os entrevistados identificaram sentimentos de culpa, tristeza, baixa autoestima e transtornos como a depressão e questões comportamentais como quadros de agressividade.
A secretária aposentada Débora Teixeira Alli vivenciou essa consequência. Ela tem duas filhas adotadas. Uma delas é Alessandra Alli Marques, hoje com 22 anos e uma trajetória com marcas de uma devolução durante processo de adoção.
Aos 3 anos de idade, foi retirada pela Justiça da tutela da genitora, que vivia em situação de rua. Alessandra morou um ano e meio em um abrigo, até entrar em um processo para ser adotada por uma família.
Segundo Débora, por ter vivido nas ruas, Alessandra tinha um comportamento complicado, o que tornou difícil a convivência com a primeira família adotiva. Em menos de um ano, a pretendente, que já era chamada de mãe, pediu para encaminhar a menina de volta para o abrigo.
“Isso causou um trauma enorme na Alessandra”, constata Débora, que se tornou mãe da menina quando ela tinha 6 anos e meio.
Débora explica que a filha tem leve deficiência intelectual, o que não a impede de trabalhar, a não ser que seja, por exemplo, mexendo com dinheiro. “Ela se dá muito bem, principalmente pelo convívio. É uma pessoa que, por onde passa, é amável, carinhosa, gentil. Todo mundo fica encantado com ela”.
Mesmo oferecendo lar, carinho e educação à filha, Débora percebe que a menina ainda continuou insegura em relação à plena aceitação pela nova família.
“Ela achava que se eu ficasse brava, eu iria devolvê-la”, conta. “Na porta da escola, por exemplo, ela vinha correndo, com medo de eu não estar lá”, acrescenta.
“É um trauma que tentei de todas as formas apagar na Alessandra. Não consegui. Ela teve psicólogo, psiquiatra, psicopedagoga, teve tudo e mais um pouco. Se eu ficava brava com ela, ela entrava em pânico com medo de que eu não fosse a querer mais”.
Débora acredita que um dos caminhos para passar segurança e acolhimento para a Alessandra e a outra filha, Ana Carolina Alli Marques, é enfatizar que elas não são um plano B.
“Elas eram tão desejadas quanto uma gravidez. Elas foram escolhidas”, afirma.
Ao lado da mãe, Alessandra conversou com a Agência Brasil. “Eu sou bastante feliz. É um sonho meu que eu queria muito”, disse sobre a vivência em família.
Recomendações
Entre as recomendações sugeridas pelos autores do estudo do CNJ estão padronização da avaliação dos pretendentes, de forma que seja mais fácil identificar motivações inadequadas para a adoção, expectativas irreais em relação à criança e despreparo para lidar com os desafios da adoção.
A jornalista Leonor Costa, a mãe da Safyra, faz questão de afirmar que não se pode haver romantização do ato de adotar uma criança. “As pessoas precisam ter compreensão do que está por vir. É importante saber que tem dificuldade, seus desafios”, sinaliza.
Outra iniciativa sugerida pelos pesquisadores é a promoção de programas de troca de experiências continuadas para os profissionais que atuam na avaliação e no acompanhamento dos pretendentes, com foco na identificação de fatores de risco comuns para pedidos de reversão dos processos de adoção.
De acordo com o coordenador acadêmico da pesquisa, Julio Adolfo Zucon Trecenti, é interessante que haja um protocolo mínimo, que tenha alguns quesitos a serem observados.
“A decisão sobre se a pessoa está preparada ou não também precisa ser baseada em critérios.”
Pode ser baseada na subjetividade e no conhecimento técnico das equipes, mas deve seguir algum protocolo mínimo que leve em conta um check list”, afirmou Trecenti durante o seminário de apresentação.
O estudo do CNJ aponta que “a rede de proteção ainda não oferece suporte psicológico e emocional que é essencial para crianças e adolescentes que são devolvidos em processo de adoção”.
“É fundamental investir na criação de programas e projetos específicos para oferecer suporte psicológico e emocional a esses indivíduos”, diz o texto, acrescentando que “esse acompanhamento pode ajudar a criança ou o adolescente a lidar com o trauma, a reconstruir sua autoestima e a desenvolver mecanismos de enfrentamento para os desafios futuros”.
Fonte: Agência Brasil
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