As operações conduzidas no estado do Rio de Janeiro pela Polícia Civil que resultaram em mortes são proporcionalmente mais letais que as da Polícia Militar (PM), segundo estudo feito por pesquisadores Universidade Federal Fluminense (UFF). Eles mapearam apenas incursões policiais que registraram três mortos ou mais, entre 2007 e 2021. As ocorrências envolvendo a Polícia Civil tiveram uma média de 4,8 mortos. Quando estas operações letais são realizadas pela Polícia Militar, a média é de 4 mortos.
Os números absolutos mostram que, nos 14 anos analisados, as duas instituições realizaram ao todo 593 incursões que resultaram em três ou mais mortes. Em algumas delas, a participação foi conjunta. A Polícia Militar esteve presente em 525 delas, o que representa 3,7% do total de suas operações. Nestas ocorrências, 2.077 pessoas foram mortas. Já a Polícia Civil participou de 95 operações letais, que corresponde a 2,5% das incursões em que esteve envolvida. Nestes episódios, foram registradas 458 mortes.
Divulgado hoje (5) pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF, o levantamento foi realizado cruzando informações oficiais do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ) com dados da plataforma Fogo Cruzado, voltada para o registro de casos de violência armada. O estudo contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
Para os pesquisadores, os números retratam a gravidade do cenário e não surpreende que a imensa maioria das ocorrências tenha envolvimento da Polícia Militar. Eles apontam que a instituição tem caráter ostensivo e repressivo, realizando frequentemente operações nas favelas, onde geralmente ocorrem as operações mais letais. Por outro lado, manifestaram espanto com a alta média de mortes nas incursões da Polícia Civil.
“Como é possível que uma instituição que deveria atuar sob prerrogativas de funções eminentemente judiciárias ocasione mais mortes que aquela cuja atribuição é de policiamento ostensivo? Pode-se dizer que a brutalidade se concentra com frequência na Polícia Militar, mas a Polícia Civil é proporcionalmente mais letal”, aponta o estudo.
O recorte por localidade revela que 64,6% das operações que resultaram em três mortes ou mais ocorreram na capital fluminense. Os quatro bairros que tiveram maior frequência dessas incursões ficam todos na zona norte: Costa Barros, Complexo da Maré, Penha e Jacarezinho.
Zona norte (58% do total) e zona oeste (26,4% do total) concentram o maior volume de ocorrências, mas chama a atenção dos pesquisadores a diferença significativa entre elas. As duas regiões são consideradas menos expostas ao controle social exercido pela opinião pública e, assim, seriam mais propícias para a ocorrência dessas operações.
Segundo o estudo, o principal fator que explica a diferença é a composição dos grupos armados. Enquanto a zona norte conta com forte presença de traficantes do Comando Vermelho e de outras facções, além de mais territórios em disputa, a zona oeste é dominada, sobretudo, por milícias. Para os pesquisadores, alguns grupos do crime organizado acabam favorecidos pela ação policial. “Apesar das milícias já controlarem 57,7% da superfície territorial do Rio de Janeiro, apenas 6,5% das operações policiais ocorrem nesses lugares”, apontam.
Os números também chamam a atenção para outras duas regiões do estado. A Baixada Fluminense responde por 21,4% das operações que resultaram em três mortes ou mais, a maior parte das ocorrências está concentrada nos municípios de Belford Roxo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu. Já no Leste Fluminense, houve 14% das incursões, principalmente, em São Gonçalo e Niterói.
A análise por ano revela que o número de operações que resultaram em três mortes ou mais sofre um queda de 2007 a 2013, quando atingiu seu número mais baixo: 12. A partir de então, a curva é ascendente alcançando 75 ocorrências em 2019. Em seguida, há uma queda superior a 40%: houve 43 registros em 2020 e 44 em 2021. A redução nestes dois anos é atribuída à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que restringiu as operações policiais em meio à pandemia de covid-19.
A vertiginosa alta das ocorrências entre 2013 e 2019, segundo a pesquisa, se deu em meio à extinção de políticas públicas como o fim das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e o sistema de metas. Foi apontado ainda outros fatores de influência como a crise econômica de 2015, a intervenção federal no estado em 2018 e a extinção da Secretaria de Estado de Segurança Pública em 2019, que foi desmembrada na Secretaria de Estado de Polícia Militar e na Secretaria de Estado de Polícia Civil.
Letalidade policial
As forças policiais brasileiras estão entre as mais letais da América Latina, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pela organização não governamental Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A edição publicada em 2019 registrava que 10,8% dos homicídios no Brasil haviam sido provocados por policiais – taxa superior à da Colômbia e de El Salvador, mas menor que a da Venezuela.
Na edição do anuário publicada no ano passado, que trouxe os dados de 2020, o estado do Rio de Janeiro mais uma vez despontou como o líder nos números absolutos de mortes decorrentes de intervenção policial. Das 6.416 ocorrências registradas em todo o território brasileiro, 1.245 foram em municípios fluminenses, o que representa quase 20% do total. A publicação apontou ainda que as ações letais da polícia ocorrem, predominantemente, em territórios de baixa renda e as vítimas são jovens (76,2% entre 12 e 29 anos), do sexo masculino (98,4%) e negros (78,9%).
O estudo da UFF também avaliou a participação da letalidade policial sobre a letalidade violenta total, que abarca, além das mortes causadas por agentes de segurança pública, os crimes de homicídio doloso, lesão seguida de morte e latrocínio. Em 2019, os policiais do Rio de Janeiro passaram a ser responsáveis por mais de 30% de todas as mortes violentas no estado.
Para os pesquisadores, a situação é inaceitável para padrões democráticos. “Não seria de se esperar que com o avanço do regime democrático o uso da força oficial fosse publicamente pactuado e limitado legalmente? Nossa hipótese é que, na área da segurança pública, as linhas de continuidade do regime militar com relação à transição democrática são mais fortes que aquelas de ruptura, porque a democracia formal e institucional se constituiu de forma concomitante a uma máquina de mortes estatal”, pontuam.
Procurada pela Agência Brasil para comentar o estudo, a Polícia Civil afirmou em nota que as mortes registradas durante suas operações ocorrem em decorrência de confrontos e que a reação dos policiais depende da conduta dos criminosos. A instituição também alegou que os números mais recentes divulgados pelo ISP-RJ mostram redução nas mortes por intervenção por agentes do estado. “Esse indicador apresentou queda de 30% nos três primeiros meses deste ano em comparação com o mesmo período de 2021”, diz o texto. A Polícia Militar também foi contatada pela reportagem, mas não se manifestou.
Chacinas
No estudo, cada operação policial que resultou em três ou mais óbitos foi caracterizada como uma “chacina”. Originalmente, a palavra designa uma técnica de abate de porcos em matadouros. Na linguagem popular, ela foi ressignificada para designar a ocorrência simultânea de diversos homicídios. Mas trata-se de um termo sem conotação jurídica.
Alguns especialistas de segurança pública não adotam um conceito meramente estatístico para chacinas. As pesquisadoras Camila Vedovello e Arlete Rodrigues defenderam, em um artigo publicado em 2019 na Revista de Estudos Empíricos em Direito, que seu significado “está não só no número de mortos em determinado território e efetuado pelos mesmos agentes por uma razão específica”, mas também nas “disputas sobre o sentido das mortes”.
“Trata-se de uma forma cotidiana de se referir a um tipo de violência extremada: a execução orquestrada de várias pessoas em uma mesma localidade”, sustentam Uvanderson da Silva, Jaqueline Santos e Paulo César Ramos no livro Chacinas e a politização das mortes no Brasil. Segundo os autores, as vítimas são sempre pessoas pobres e há quatro motivações recorrentes para a chacina: disputas oriundas das dinâmicas criminais organizadas, ações de represália por parte das polícias, rebeliões em presídios e conflitos no campo.
No início da década de 1990, diversos episódios dessa natureza registrados no Rio de Janeiro ganharam os noticiários do país. Em julho de 1993, por exemplo, oito moradores de rua foram executados enquanto dormiam em frente à Igreja da Candelária. Um mês depois, 22 moradores da favela de Vigário Geral foram mortos dentro de suas casas. No ano seguinte, policiais mataram 13 pessoas na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão. No resto do país, chacinas também foram registradas no período como os massacres do Carandiru em 1992 e de Eldorado do Carajás em 1996.
Operações oficiais
Os pesquisadores da UFF avaliam que, a partir dos anos 2000, ocorrências desse tipo no Rio de Janeiro passaram a ser associadas com mais frequência a operações oficiais, o que indicaria baixo controle das forças policiais. A operação no Jacarezinho no ano passado, considerada a mais letal da história da capital fluminense, é apontada como o caso emblemático mais recente: 28 pessoas morreram, incluindo um policial. A Polícia Civil, responsável pela incursão que completa exatamente um ano hoje (6), sustentou na época que os óbitos resultaram de confronto.
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), entretanto, afirma ter encontrado indícios de execução de três pessoas e apresentou duas denúncias. Em cada uma delas, responsabiliza dois policiais. O MPRJ também denunciou dois homens pela morte de um policial civil.
O estudo da UFF observa que o Jacarezinho, embora seja o quarto bairro do Rio de Janeiro com a maior quantidade de operações que resultam em três ou mais óbitos, é o primeiro em número absoluto de mortos. Entre 2007 e 2021, 122 pessoas morreram nesses episódios. “No Jacarezinho, há 70% de chance da ocorrência de mortes durante operações policiais”, registra a pesquisa.
Segundo apontaram os pesquisadores, operações emergenciais tendem a ser um fator de incremento de sua letalidade, enquanto as operações planejadas e respaldadas por ordens judiciais possuem menos chance de ocorrência de chacinas. Eles recomendam maior controle interno e externo da atividade policial, além do estabelecimento de protocolos específicos para atuação nos momentos de confronto entre grupos armados, situações frequentemente associadas às chacinas.
“Quanto mais o uso da força é limitado, prescrito, respeitado e há responsabilização em casos de violações, menor é a probabilidade da ocorrência de chacinas. Em outras palavras, o controle democrático da atividade policial é certamente a melhor forma de enfrentamento às chacinas”, sustentam os pesquisadores.
Agência Brasil
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